Segurança dos recursos e dos dados dos investidores estarão em discussão até o final de janeiro e podem significar uma nova etapa no mercado
A consulta pública que o Banco Central abriu, no final da semana passada, para ouvir os participantes do mercado de criptoativos e elaborar as primeiras linhas da regulamentação do setor deve revelar os principais pontos que impactam diretamente na vida do investidor.
Especialistas jurídicos e do segmento são unânimes de que a segregação patrimonial é o principal mecanismo da estrutura dos prestadores de serviços de ativos virtuais (os VASPs) que deve repercutir na decisão de investimento. Na sequência, gestão de riscos, segurança de dados e curadoria dos ativos ofertados são outros aspectos focados diretamente no investidor, seja do varejo, profissional e institucional.
“O edital de consulta pública lançado pelo Banco Central demonstra que o órgão busca uma regulamentação bastante detalhada do setor, contando com o auxílio da comunidade cripto para fechar brechas de segurança e fomentar um ambiente mais seguro aos investidores”, pontua Thiago Barbosa Wanderley, advogado tributarista sócio do Salles Nogueira Advogados e doutorando em tributação de criptomoedas.
Vanessa Butalla, diretora executiva do jurídico, compliance e regulação no MB, destaca que, sob a ótica do investidor, a consulta aponta a preocupação do regulador com alguns aspectos de proteção que já existem como melhores práticas para o segmento, mas não necessariamente são adotados por todas as plataformas de negociação (exchanges) que oferecem serviços, sejam nacionais ou estrangeiras.
Vanessa também destaca que a consulta pública vai colher contribuições para a definição de critérios para a seleção dos ativos listados pelas plataformas e oferecidos aos investidores e as formas como tornar informações claras que compreendam os riscos envolvidos nos investimentos em cada tipo de ativos virtuais.
Rodrigo Caldas de Carvalho Borges, sócio do Carvalho Borges Araújo Advogados, e especialista em blockchain, lembra que a segregação patrimonial foi muito discutida durante o processo de construção da Lei 14.478/2022, conhecido como o Marco Legal dos Criptoativos, e que ficou de fora do texto aprovado.
“A segregação patrimonial é um tema bastante defendido por parte do mercado, visando uma maior proteção do investidor, contudo, será importante avaliar a forma como será implementada, uma vez que eventual inclusão via norma infralegal poderá ser objeto de questionamentos quanto à sua legalidade”, alerta Borges.
Para Wanderley, provavelmente, os mecanismos para efetivar operacionalmente a segregação devem passar pela indicação do responsável por movimentar uma carteira digital (wallet) com acesso público por meio da blockchain. Para ele, a efetividade da segregação será reforçada notadamente se os ativos dos clientes somente sejam movimentados com autorização de múltiplos responsáveis e, estes sejam responsabilizados pessoalmente em caso de movimentação indevida dos fundos pertencentes a clientes.
“O mercado de criptoativos tem criado operações cada vez mais próximas dos demais serviços financeiros tradicionais”, observa Abdul Nasser, advogado tributarista sócio do Schuch Advogados. “Grande parte das empresas e plataformas ofertam serviços, como poupança, aplicações, empréstimos, locação, operações com garantia, cartão de crédito e débito com base em criptoativos e todo tipo de serviços financeiros das instituições. Porém, fazem isso sem a segregação dos ativos dos clientes. Para os clientes é um risco enorme”, reforça.
Nasser destaca que grande parte dos lucros dessas plataformas vem justamente da negociação desses ativos dos clientes. “Por isso, muitas empresas do setor são contrárias à segregação”, afirma. “Não querem perder a liberdade de usar esses ativos como bem entendem.”
O “lado negativo” da segregação de ativos deve ser o aumento dos custos de transações. “A segregação vai resultar em aumento de custos de transação, já que reduz a liberdade de negociação dessas empresas com uso dos ativos dos clientes”, pontua Nasser. “Mas trará inquestionável segurança jurídica aos clientes que não ficam sujeitos aos riscos do negócio dessas plataformas.”
“Como de costume, o aumento da segurança tem como contraponto o possível encarecimento da infraestrutura necessária à prestação dos serviços”, afirma Wanderley, citando a possibilidade da criação de um fundo garantidor, a exemplo do conhecido Fundo Garantidor de Créditos (FGC), do sistema bancário, no tópico do edital em que o BC indaga sobre quais os possíveis mecanismos de proteção dos investidores.
Julia Castelo Branco, diretora jurídica da Hashdex, pontua que, “em um panorama geral sobre os questionamentos levantados pelo Banco Central, percebe-se que a proteção aos clientes deve ser um pilar fundamental para o avanço do mercado, com medidas de transparência em relação à volatilidade a que cada produto pode expor os investidores e as medidas de proteção que cada prestador de serviço deve adotar.”
“Não se trata de replicar regras do sistema financeiro tradicional adaptadas apenas a uma nova tecnologia”, afirma Vanessa, “mas de estruturar a base regulatória para um sistema alternativo que representará mais uma opção de investimento para os brasileiros”.
Na análise de Matheus Moura, presidente da fintech BRLA Digital, o Banco Central trouxe questionamentos cruciais para o debate. “Na questão de segregação patrimonial, operacional e jurídica, vislumbramos oportunidades significativas para redução de riscos no setor e para os clientes”, ressalta. “A consulta pública aborda temas relevantes, como gestão de chave privada e segurança cibernética, ajudando na redução de riscos tecnológicos. O BC destacou preocupações essenciais e ajustes necessários para o setor, enquanto os questionamentos foram abrangentes, promovendo um ambiente propício para inovação.”
Em outro aspecto, Dan Yamamura, sócio e fundador da Fuse Capital, destaca que, além dos temas que foram propostos, o próprio movimento da consulta pública do Banco Central é inovador. “Isso é um ponto ou um caminho muito pró-mercado, no sentido de trazer o público, os especialistas e as partes envolvidas no segmento para poderem contribuir com a regulamentação de uma forma que ela seja saudável para o próprio mercado”, reforça.